Sorrir em tempo da máscara

Foto zwei maskierter Frauen zu Corona-ZeitenZwei maskierte Frauen zu Corona-Zeiten · Foto: © Gerd Altmann (pixabay.com)

de Eberhard Fedtke e Ana Carla Gomes Fedtke

> Encontro-me de sangue-frio numa fila frente a um supermercado, o carrinho de compras ligeiramente nas mãos, bem disciplinado, observando a distância de 2 m relativamente aos ­vizinhos da frente e atrás, cumprindo o que estipula a lei 2-A de 20 de março 2020. Imperativamente marcado, este isolamento social está estampado no chão em linhas amarelas, a cada 3 até 5 minutos avanço, como verifico no meu fiel relógio chinês, avaliado num valor de 10 euros, vou calculando e multiplicando os 17 compatriotas em frente a mim com uma média de 4 minutos de diferença, quando poderei entrar na loja para comprar o que preciso para a minha família, enchendo rigorosamente o carinho até ao topo. Felizmente não chove, nem pensar num martírio de tal compra! O ambiente parece um pouco como folclore, Covid 19 em tempo de confinamento, ­fazer as tarefas quotidianas para sobreviver sem contactos «cara a cara». Um suplício para muita gente, se vejo os vários rostos em torno. No total contabilizo uma fila com cerca de 30 pessoas bem mascaradas, algumas com luvas deselegantes. Sem máscara, é certo, ninguém entra, uma regra indiscutível! Lutamos juntos contra esta pandemia. Tem de ser, reflito absorto nesta irrealidade social.
O serviço militar não pode ser mais regulado. Mas os portugueses têm a calma e a paciência no sangue. Faz lembrar os antepassados dos séculos XV e XVI, em pleno período de Descobrimentos. Para chegar à América, foram semanas e semanas purgantes sem vento para andar em frente. O nosso povo mostrou efetivamente a sua perseverança, praticando a arte de espera e esperança. Mas a distância de 2 metros num «país de beijinhos e abraços sem fim» é um juízo digno do céu, mas uma «via dolorosa» para todo o mundo infectado.
Assalta-me a ideia de como poderei transmitir a uma outra pessoa a minha simpatia com um sorriso por detrás da máscara larga. A maneira usual de abrir a boca, mostrar os dentes e inclinar a cabeça, não serve. Devo experimentar uma nova maneira. A pessoa à minha frente com 2 m de distância obrigatória parece ter um bom vulto para uma prova espontânea. Trata-se de uma beleza, na casa dos quarenta, bem equipada com uma máscara radiante, evidenciando a magnitude dos seus olhos profundamente ­sonhadores. A mãe, com uma beleza igual à da filha, de máscara rosa, traz a pequenota com cerca de 12 anos, Mafalda de nome, pela mão. A pequena parece olhar continuamente para a minha máscara simples branca. Em contrapartida ela tem uma bela e pitoresca peça, com uma viva imagem dum passarinho, pintado em cima no fundo preto. Menina Mafalda, tu és muito mais bonita com a tua máscara, ganhaste a nossa competição secreta num mundo de mascarados.
Quando a mãe se virou, curiosamente com o mesmo nome, como ouvi num ­telefonema dela com uma amiga, tentei oferecer-lhe os meus cumprimentos com um melhor e prometedor sorriso. Abri a boca com tanta força que, mostrando os dentes quase caiu a minha máscara. ­Esbugalhei os meus olhos com toda a ­claridade e bondade, mas ela não reagiu, como que se sentisse cravada em pensamentos pandémicos. Analisei com des­ilusão violenta: a máscara é um obstáculo social terrível, um distúrbio zangado para a comunicação humana, um drama excessivo para a cultura.
Quando ela se virou pela segunda vez, isto porque eu tivera, entretanto, sem qualquer problema de logística uma ­comunicação de intensa comparação de máscaras com a sua filha Mafalda II − a rapariga farta de tamanha monotonia à sua volta − reproduzi a mesma cerimónia, usando para tal a minha própria beleza e, reforçando a minha ação, levantei a mão direita. Cumprimentei-a, deixando tremer as minhas sobrancelhas e as ­minhas orelhas, mas nenhuma reação chegou desta beleza distante. Quando na minha última tentativa completei os requisitos anteriores com uma profunda e dolorosa reverência para a minha coluna, quase arriscando uma prostração atrás do meu carrinho, ela riu-se mais ou menos de forma clemente, como que encantada perante a palhaçada dum doido. Acabou, a máscara é um bloqueio social catastrófico, inflexível e intransigível! ­Experiências de solidão no meio duma superpopulação, sem romances platónicos com as Mafaldas por detrás das nossas máscaras.
Encenei com novo entusiasmo e optimismo a mesma cerimónia ao cumprimentar com um sorriso atrás a máscara dois rapazinhos na linha atrás de mim. Usavam máscaras de estilo ilustre oriental e ambos traziam uma garrafa de cerveja na mão. Como irão beber sem mexer na máscara ou a molhar, questionava-me eu, curioso. Mas eis que, de repente, para minha surpresa, sacaram relaxadamente de uma palhinha, deitaram-na elegantemente no gargalo da garrafa e, colocando a palhinha na boca sem tirar a máscara, uma anormalidade surreal, murmuraram «obrigado» ao meu sorriso expressivo, compreendendo eu talvez um «bom apetite» ou «boa saúde». Obviamente bebem sempre a cerveja assim. A ­minha máscara não funcionou, não operou bem. Fim então a estas tentativas e sonhos sociais frágeis! Foi um bico de obra para entrar no supermercado.
Abreviando estas terríveis vicissitudes: Se o uso de máscara tiver como objetivo a salvação do ambiente social, era talvez preferível o «não uso» de máscara branca, como disfarce comum. Oferece-se um grande mercado de configurações individuais e de decorações especiais, ampliando na totalidade a base humana − uma panóplia ampla de máscaras diversas, salvaguardando um resto de erotismo sociocognitivo e de arte. Para qualquer publicidade da declaração íntima, pois logo provocam um sorriso automático ao observador, a máscara pode ter as cores da bandeira nacional, mostrar o símbolo do clube de futebol preferido, pode deixar ver o signo de nascimento, leão, escorpião, peixes, virgem etc., pode até enobrecer almas animais ferozes como o tigre, o elefante, o hipopótamo, o orangotango ou mesmo o resto do zoo, mas uma coisa é certa: a máscara universal para as crianças, assim como um promotor de bonecas e figuras artificiais da internet, é para toda gente um novo mundo de inspiração com marcas individuais e surpresas definitivas, um caleidoscópio infinitivo repleto de facetas multidimensionais e ocultas, formando, em simultâneo, multiplicidades de rostos de ícones surreais, sendo que no fundo, todo este novo ambiente social não é mais que, em inúmeros aspetos, um espelho da raça humana, refletindo a cara da terra. Sem passar esta época, iremos ter pouco a pouco o fim da vida social. Uma sociedade permanente com máscaras faciais, fora do carnaval, não é concebível. Uma máscara contra o vírus e por cima uma máscara para a alegria do carnaval é uma contradição infernal, um horror ético.
A indústria de máscaras deve ativamente explorar o mercado com ideias inovadoras. Quando um dia − efetivamente − acabar este período contemporâneo com o retorno de explosões drásticas e fanáticas de beijinhos e abraços bilaterais, muitas máscaras serão arquivadas e deixarão na memória encontros mascarados expressivos com recordações nomeadamente dos olhos bonitos portugueses exemplares, sejam de origem romana, árabe, visigoda e «omni-europeia» − filigranas ou violentas, simpáticas ou desconfortáveis, elegantes ou vulgares, artísticas ou rústicas, introvertidas ou progressivas, clássicas ou futuristas, honestas ou misteriosas, transparentes ou enigmáticas, terrestres ou ­galácticas, ambiciosas ou comodistas, ­insípidas e aromáticas, altruístas ou egoístas, enfim, também um desfile de lembranças exóticas e sofisticadas conforme os múltiplos caracteres únicos de portadores da máscara e da refinada ­tecnologia têxtil.

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